3.8.07

Leia texto inédito de Daniel Dalpizzolo. Neste artigo, Daniel fala do filme "O Bandido da Luz Vermelha"!


O debochado !

Por Daniel Dalpizzolo

Transcendental. Sujo. Poético. Imoral. Amoral. Transgressor. Impostor. Alusivo. Corrosivo. Incisivo. Abusivo. Doentio. Fálico. Pigarrento. Folclórico. Emblemático. Insano. Inovador. Referencial. Exponencial. Documental. Bizarro. Translúcido. Mordaz. Cínico. Cafajeste. Irônico. Lacônico. Ostensivo. Extensivo. Anacrônico. Moderno. Maléfico. Ácido. Corrosivo. Brutal. Anormal. Evasivo. Inebriante. Extasiante. Extravagante. Confuso. Difuso. Sádico. Nervoso. Cáustico. Frenético. Poético. Político. Apocalíptico. Visionário. Revolucionário. Performático. Sarcástico. Sacana. Surtado. Marginal.

Marginal... O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, fora o marco inicial do movimento cinematográfico brasileiro intitulado Cinema Marginal – título que é praticamente auto-explicativo, não é? Fã ensandecido de Welles e Godard, o jovem diretor (22 anos, meu bem... 22 dois anos...) praticamente redefinira o andamento do cinema nacional, atribuindo aos valores conquistados durante o movimento do Cinema Novo um ar mais urbano, sujo, deplorável, sem contar com aquele nacionalismo barroco e tentando se desvincular do intelectualismo típico das obras de Glauber Rocha ou Walter Hugo Khouri.

Junte a tudo isso uma gama praticamente interminável de referências e sátiras sociais, policiais, políticas, jornalísticas e cinematográficas, e o resultado é uma experiência repleta de singularidades, sem qualquer linearidade nem muito menos pretensão de “contar uma história”. É quase aquilo que Godard havia tentado fazer com seu Acossado, só que muito mais funcional e visceral – diferentemente de Godard, que procura simplesmente ir quebrando sua narrativa, mas sempre retornando à idéia original, Sganzerla se abstém de qualquer mote mesmo, surtando cada vez mais à medida que o filme avança, sem se preocupar em tentar encaixar uma situação à outra.

O diferencial de O Bandido da Luz Vermelha é o deboche que faz a essas referências utilizadas para sua composição. O diretor não se contenta em apenas citá-las, tudo é feito de uma forma que transpareça claramente a sarcasticidade da obra. Cria uma transposição do cinema europeu, múltiplas vezes citado e recitado dentro da “narrativa”, para o ambiente em que a “história” se desenvolve. Sim, porque, afinal, O Bandido da Luz Vermelha é um filme de terceiro mundo, filmado no terceiro mundo, sobre pessoas do terceiro mundo, com pessoas do terceiro mundo e, principalmente, para pessoas do terceiro mundo.

Em virtude disso, o que se vê durante a obra não são o charme e o requinte de Paris, nem mesmo uma tentativa de recriação de Londres, Veneza ou Barcelona. A estética é suja e decadente, as locações são claramente suburbanas, os cenários são compostos pelo lixo, tanto os detritos materiais quanto o lixo verbal, o palavreado pesado, imoral ou, até mais do que isso, amoral. A prostituição, a violência, as drogas, tudo é mostrado sem o mínimo de pudor, já que, diante da idealização realista do diretor, tudo isso contribui para a veracidade visual e contextual da idiossincrasia fílmica.

O resultado de toda esta mistura é um produto invariavelmente bizarro, esquizofrênico, um turbilhão de mensagens surtadas que acabam resultando em um trabalho de viril representatividade dentro do cinema nacional. Afinal, são poucos os filmes que conseguem ser revolucionários tendo como principal fonte o referencialismo, utilizando-se de idéias pré-concebidas e ironizando tudo aquilo que estava ao seu redor. Não fosse o fato de Luis Sérgio Person ter feito um pacto com o demônio e realizado a obra-prima São Paulo S.A, este poderia ser facilmente considerado (em meu gosto pessoal) o melhor filme já produzido aqui no país. É tudo aquilo que aquela (sorry) porcaria de Acossado quis ser, mas não conseguiu...

(... E o final, totalmente alusivo a Pierrot Le Fou, do próprio Jean-Luc Godard (troque a pólvora pela eletricidade e a poesia pela ironia), é um dos principais exemplos de que é possível construir-se uma citação sem que ela soe simplesmente como uma recriação do produto original – e olha que a fonte em questão é um de meus filmes preferidos, ou seja, a “cópia” estaria previamente destinada a ser recebida com desgosto por minha pessoa [e, no entanto, quase extraíra um orgasmo fulminante de meu cérebro – e não apenas dele]...).

“O Terceiro Mundo já explodiu e o lixo está contaminando o universo!

Salve a boçalidade do submundo!

Quem tiver de sapato não vai sobrar, não vai sobrar, não vai!

O negócio é o seguinte:

Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba!"

2 comentários:

Anônimo disse...

O Ira! usou alguns dialogos desse filme no disco Psicoacústica, e o resultado foi uma interessante colagem da musica urbana caracteristica da banda, com o cinema marginal nacional.
Eu ja vi esse filme uma vez.
Ouvi o disco 45684 vezes.
Recomendo,ambos.

Roberta Scheibe disse...

O texto ficou muito bom...
A gente precisa refletir e valorizar o nosso cinema de um modo muito mais democrático e honesto.
Obrigada pelo texto Daniel!