29.8.07

A arte da leitura

Termina sexta-feira, 31 de agosto, a 12ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Isto caso você esteja lendo o jornal no dia de sua circulação. Caso contrário, já terminou. Ou está terminando. Este ano a jornada trata do tema A leitura da arte & A arte da leitura.

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Na abertura do evento o público recebeu com surpresa e satisfação o nome do autor ganhador do maior prêmio literário do Brasil. Mia Couto, moçambicano (ele é homem!!!), levou a bolada de 100 mil reais com o romance “O outro pé da sereia”.

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Antes disso, nos “discursos”, as autoridades, entre elas a organizadora das Jornadas Tânia Rösing, o deputado federal Beto Albuquerque e o deputado estadual Luciano Azevedo, lamentaram o cancelamento da verba que a jornada receberia com o aval do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul. Tramita no conselho um “parecer” que questiona o uso de verbas do evento.

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Na terça-feira à noite, a discussão no circo da cultura foi sobre arte & entretenimento. Participaram Maurício Dias da TV Senado, Lúcia Araújo da TV Futura, a escritora Marina Colassanti, o escritor vencedor do prêmio Jabuti Flávio Carneiro, e o escritor, compositor e produtor musical Nelson Motta. Eles defenderam que entretenimento também pode ser arte, que a arte pode transitar por todas as camadas sociais e que o entretenimento também pode ter um valor estético e conceitual. Aproveitaram a oportunidade para falar mal de Paulo Coelho. Nelson Motta pegou o ganho e disse que Paulo Coelho vende muito no exterior e que lá os livros são sensacionalmente mais bem escritos do que no Brasil. Pelo jeito o tradutor deve ganhar uma grana...

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Paralelamente à jornada acontece o curso sobre o jornalista passo-fundense Tarso de Castro. Ele foi o fundador, editor, repórter e entrevistador porra-louca do Pasquim. Depois disso fundou e trabalhou em vários jornais brasileiros. Entre eles o Jornal de Amenidades, o Já e o Jornal O Nacional do Rio de Janeiro, que chegou a vender um número expressivo de exemplares na terra de Chico Buarque. O jornalista também ajudou a criar a Ilustrada, caderno de cultura do Jornal Folha de S. Paulo, e também foi colunista deste mesmo veículo. Tarso amava mulheres, bebidas e jornalismo. Foi amado e odiado. E o curso tenta fazer justiça a um personagem quase esquecido por boa parte dos cidadãos de um Brasil de memória curta.

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Pra terminar, numa dessas noites, eu sentada numa cadeira, embaixo da lona da jornada, prestando atenção na conversa proferida pelos oradores. Minha tia, Maristela, que pela primeira vez participa do evento, me puxou pro lado e cochichou:

- Tu já pensou se cai esse troço aqui?

- O que tia? Você tá falando da lona?

- Sim!

- Mas não vai cair, tia.

- Mas e se cair??? Todo mundo vai ficar preso embaixo desse negócio. Acho que amanhã vou trazer uma tesoura.

- Então tia, aproveita e traz uma de ponta.

27.8.07

Jornalista de alma!

Como diria meu mestre João Carlos, o jornalista "Tarso de Castro era um homem de copo e vara em punho". Eu acrescentaria ao copo e a vara o jornalismo alternativo. É por isso que a 12ª Jornada de Literatura deste ano justamente vai homenagear o jornalista prata da casa Tarso de Castro.

O curso “O Brasil de Tarso de Castro: a arte da leitura & feitura de O Pasquim”, vai abordar a trajetória do profissional que revolucionou o modo de fazer jornalismo no Brasil desde o final da década de 60. Tarso de Castro foi o pai d’O Pasquim, da revista Careta, do Jornal de Amenidades, do jornal O Nacional do Rio de Janeiro, O Panfleto, entre tantas outras publicações. Ele também participou do caderno Ilustrada, e foi colunista do jornal Folha de S.Paulo.

O evento terá a participação de pesquisadores, professores e jornalistas, entre eles Ziraldo Alves Pinto, Mauro Gaglietti, Francisco Carlos dos Santos Filho, Marta Campos, João Carlos Tiburski, César Augusto Azevedo dos Santos, Daniel Bittencourt e dos pesquisadores e biógrafos Tom Cardoso e Sônia Bertol.

“O Brasil de Tarso de Castro” vai analisar as obras “O melhor d’O Pasquim” de Jaguar e Sérgio Augusto, da editora Desiderata; e as obras dos participantes do curso Tom Cardoso, com o livro “Tarso de Castro: 75 Kg de músculos e fúria”, da Editora Planeta; e o livro da professora Dra. Sônia Bertol, “Tarso de Castro – o editor de O Pasquim”, da UPF Editora.

A homenagem a Tarso de Castro realiza-se de 28 a 31 de agosto, na sala 204 da Faculdade de Artes e Comunicação, na Universidade de Passo Fundo (UPF). Este evento acontece paralelamente a Jornada Nacional de Literatura que inicia hoje.

24.8.07

A dança e o parto

Ana Maria da Rocha

Barulho de objetos caem sobre o metal. O cheiro de álcool entra pelas suas narinas. Algo impede o movimento do seu braço. Sara recorda onde está. É muito cedo, o que implicaria num dia longo demais e isso ela não quer, decide fingir que está dormindo. Teria enganado qualquer um, exceto o seu acompanhante. Davi gabava-se, em família, de ser o único que a irmã não enganava. Bom dia, bicho preguiça! Como resposta um resmungo abafado pelo lençol. Por que as pessoas costumam tratar os doentes dessa forma infantilizada? Por mais que tentasse não conseguia mais manter os olhos fechados, as abomináveis fadinhas da luz vinham forçar suas pálpebras e nem os tapas, que certamente atingiram uma ou outra, serviram de argumento para espantá-las. Enfermeira Laura compareça ao Posto 4. Doutor Ricardo, doutor Henrique está lhe aguardado na sala 15. Esfregou bem os olhos para que não sobrasse nenhum vestígio de sonho. Coisas que sempre estão no ar e a noite desabam sobre os lençóis. As vozes que a atormentavam nas noites da infância voltaram... talvez ela ainda seja criança e tenha sonhando ser gente grande - isso justificaria o tom de voz do irmão. Isso! Ela é só uma princesinha em sua cama rosa, rodeada por sua corte de bonecas de porcelana. Fecha os olhos.

Faz sol, da cozinha a mãe ri vendo a filha correr atrás da própria sombra, tentando capturá-la, entre passos de balé. Essa menina tem cada idéia. Depois do almoço é a hora de fazer preguiça. Sara arrasta o irmão para fora e deitam-se sob o sol, brincam de descobrir objetos e animais e até criaturas imaginárias no formato das nuvens. Eu queria que as nuvens fossem de algodão doce. Quando come algodão doce Sara fica lambuzada até as orelhas. Por que? Pergunta o irmão que prefere picolé. A mãe não disse que o papai tá lá do céu? Então, ele podia comer algodão doce e lembrar de mim, daí não ia se sentir sozinho.

A enfermeira volta com o café da manhã. Diz que a cirurgia foi marcada para a tarde do dia seguinte. Davi insiste para que ela coma alguma coisa, está muito magra. Ela ri e diz que o câncer foi a dieta mais eficiente que já fez. A comida do hospital enoja-a e ela não acredita na higienização daquelas xícaras e talheres. Pede uma maça. Lembra das dentadas que deu na maça que a serpente lhe oferecia no sonho. Contou para o irmão, riram juntos. Nunca fora uma boa cristã, dos sete pecados capitais não teve um que não cometesse. A tia Letícia rezaria dobrado pela minha alma se soubesse! O médico entra para examiná-la, insiste que ela tem boas chances. Sara sabe que está mentindo, sempre que as pessoas insistem em algo é porque estão mentindo. Quando fala a verdade, a pessoa acredita-se suficientemente convincente e fala só uma vez. Mas quando mente, reforça a idéia para tentar convencer a si mesma do que está dizendo.

Mãe me leva no circo, tem palhaço, elefante e maça do amor. Mãe se duas pessoas mordem a mesma maça do amor ficam apaixonadas? A menina imita a bailarina que aparece na televisão. De onde tu tirou essa idéia guria. Tua imaginação não tem limites. Chove muito lá fora e Sara está na janela namorando o temporal. Tinha medo, mas o vento fazia a chuva dançar tão bonito. Mãe, eu quero dançar que nem a chuva! Mas a noite quando os galhos arranham o vidro da sua janela, puxa a coberta e chama seu exército pessoal, mãe, irmão e cachorro, para defendê-la. Por que a noite tá chorando e o vento geme desse jeito? Ela acredita que é só chorar um pouquinho e todos os seus desejos são atendidos e que se chamar a mãe a dor passa.

Mãeeeeeee! O irmão que tinha cochilado na cadeira, acordou com o grito. Já era passado do meio-dia, Sara suava muito e estava febril. Davi achou melhor chamar a enfermeira. Quando voltou para o quarto encontrou-a aos prantos. Afinal admitia que tinha medo! Amanhã daria a luz à um tumor que, ironicamente, alojara-se onde ela nunca permitiu que nenhuma forma de vida se desenvolvesse. Já, esta forma de morte, não teve como evitar. Como seria seu primeiro e último parto, ela, por carinho ou masoquismo batizou o tumor de Miguel, o nome do filho que nunca teve. Apesar de acreditar-se dotada do dom da premonição, ela não sabia que sairia dali. Que voltaria a dançar e encontraria o Antonio numa revisteira e tomariam um café e os sentimentos... os sentimentos até então represados, transbordariam deixando-os encharcados.

Na faculdade, seus olhos castanho esverdeado somados a pele quase negra, garantem que não passe despercebida, mas é um tanto quanto difícil, dizem seus namorados que não permanecem no cargo mais que um mês. Cursa o quarto semestre de Letras, quando vai pela primeira vez ao quarto do Antonio. Onde descobre o sexo dos anjos, porque os anjos têm sexo sim. Simultaneamente, dança em um grupo amador, adora balé clássico mas não se encaixa no perfil das bailarinas do teatro municipal, é grande demais, ossuda demais, escura demais. A menstruação atrasa, ela não quer o filho, esconde do Antonio. É convidada para dançar numa companhia no exterior. Antonio terminou a faculdade de Direito e passa num concurso público. Ela dança em Los Angeles, sem anjo nenhum. Ele em Curitiba com uma dançarina de um clube noturno.

Sara no palco magnetiza. Os homens caem, literalmente, aos seus pés. Tem um que adora lamber a sola suada do seu pé depois de cada apresentação. Outro, não conto! Mas colo, com direito a carinho e sossego ela só encontrou no peito de dois homens e um era seu irmão e outro seu amigo. Os homens que têm só lhe trazem angústia e a sensação de inadequação. Sempre atiram em sua cara que seu jeito de amar está errado. E como se deve amar?! Berra dentro de um restaurante elegantíssimo. Ela era sempre demais. Louca demais. Passional demais. Indiferente demais. Vibra demais. Certinha demais. Tensa demais. Nunca boa demais. Minto teve um que disse que ela era boa demais. Mas foi uma daquelas histórias que os homens contam quando traem suas mulheres e não conseguem mais conviver com a consciência culpada, daí inventam desculpas para passar a responsabilidade do fim para elas.

Anoitece e ela não para de indagar o irmão. Ele já havia traído? O que tinha de errado com ela? Por que não conseguia levar a vida fácil como a maioria das pessoas? Uma mentira dita mais de mil vezes, vira verdade? Mentiras sinceras interessam mais? Por que o Antonio não percebeu o quanto ela o amava? O irmão achava que aborto era crime? O câncer era um castigo? Existia inferno? Sara transpira excessivamente. Fecha os olhos. Onde está a mamãe? Quem vai me dar colo? Cadê o meu filho? Quem quebrou a minha boneca? Mãe, olha esse passo, fiz direito? Davi preocupa-se, pensa que ela está delirando.

Dia quinze de junho completou trinta e cinco anos. Não comemora. Os exames que a ginecologista pediu indicaram a existência de um tumor no seu útero e em estágio avançado. Sara acredita que produziu ele da mesma maneira que fabrica suas enxaquecas. Lembra que faz muito tempo que não come algodão-doce e nem maça do amor, estava amarga demais. Magoa as pessoas a sua volta, umas para não confessar sua fraqueza e a dependência, outras para que sintam menos a sua falta. Era o fim, morreria de culpa, remorso, castigo divino expresso na forma de um câncer.

Acaba de entrar na sala de cirurgia. Pede para ser cremada. Para que suas sapatilhas sejam jogadas ao mar num dia de tempestade. Confessa que foi ela que arrebentou as cordas do violão que Davi ganhou no natal de 74. E que ama o Antonio. Mãe me cuida. Tenho medo. Filhinho não chora já estou indo. Ela reza baixinho.

22.8.07

O de sempre

Por Luis Henrique Boaventura

Atravessa a rua debaixo de uma chuva torrencial. Como um peixe, rasgando a correnteza brava fisgado pelo anzol brilhante do velho letreiro de néon. Entra num bar qualquer, num bar que nunca havia entrado na vida. “O de sempre”, diz ele, enquanto se livrava da água como um cachorro molhado. O barman nunca o tinha visto, mas percebeu a total falta de senso do homem. Serviu um scotch duplo. Não diria nada. Em primeiro lugar, porque não queria um conflito em vão. Depois, porque não tinha a menor inclinação a qualquer tipo de caridade. Já que se nem percebera que aquele não era o lugar que freqüentava, certamente não perceberia ou sequer sentiria o gosto da bebida. Talvez, como qualquer outro, ao menos uma vez na vida, precisasse apenas de algo forte para queimar sua garganta. Para dar-lhe a certeza de que, apesar de todas as fortes evidências gritando o contrário, permanecia vivo. Nunca valeu a pena ao barman se interpor entre um homem e seu copo. Mas não... aquele levou a boca à bebida, e não o contrário. Parecia querer mergulhar nela, prevendo exatamente o sabor redentor que o esperava. No entanto, sentiu o aroma clássico, a suavidade decepcionante de um uísque impotente frente àquela língua calejada de destilados. Sentiu que não era o que bebia sempre, nem o que pagaria para beber. Se tivesse tal intenção, de qualquer modo... Olhou para o chão montado de parquê escuro, coberto pelo grosso tapete de poeira e bitucas de cigarro. Deu uma boa olhada naqueles rostos inéditos que se camuflavam entre as sombras plantadas pelas altas horas de um domingo à noite, no terreno árido das mesinhas de fundo. Respirou aquele ar diferente, carregado de fumaça nacional e nicotina nativa, quase edificante, quase estranha, tão densa que poderia ser capaz de produzir paladar ao invés de aroma. Olhou para um rádio antigo que conversava em letargia com o acaso, escondido no balcão alto da esquerda, junto aos vidros de pepino, preenchendo cada canto, cada fresta de parede e de telhado com um silêncio de sentidos e um carnaval de estática. Havia pegado a primeira e não a segunda à esquerda depois da igreja, provavelmente. Enfim percebeu, sem que precisasse de qualquer palavra do barman. Sabia beber, mas não era capaz de andar, pensar ou sentir sozinho. Quase puxou o revólver ali mesmo...

“Por que o senhor não se senta? Senta aí, pega um banco”. Bastaram alguns segundos para que o barman se arrependesse. Mal sabia que salvara a vida do homem. Ou que a condenara por completo... Ele respondeu com um olhar para o teto avermelhado, com as mãos que se desprendiam do gatilho frígido do revólver e se revelavam sobre os bolsos da jaqueta de couro de uma década de idade. Alcançou um daqueles banquinhos duros e sentou. Arremessando seus braços cansados sobre balcão, e erguendo com dificuldade os olhos em direção ao barman, pediu absinto. O tal do barman aparentava uns sessenta, sessenta e cinco anos. Não devia ter mais de cinqüenta, mas estavam estampadas nas linhas fortes do seu rosto centenas e centenas de noites de domingo como aquela. Cada uma delas o envelhecia uma semana. O homem, por sua vez, aparentava já estar morto. Teria uns trinta e cinco, soando bem generoso. Já a garrafa de absinto parecia anterior aos dois. Envolta pelo manto de uma poeira grossa que cobria o verde intenso da bebida. A criptonita de qualquer homem.

Ela é virada de vagar, como se vira uma mulher com cuidado para não acordá-la. As primeiras gotas fogem pelo lado torno da garrafa. Podia-se vê-la explodindo ao atingir o fundo do copo, iluminava quase o bar inteiro, acompanhada pelos trovões distantes da tempestade que se afastava. O barman nem havia terminado de enchê-lo quando o homem pegou-o de repente do balcão. Olhou a bebida fixamente. Seduzindo-a, conquistando-a, bebendo-a primeiro com olhos, para só depois tragá-la sem culpa alguma. Nem chegou a tocar o copo com os lábios, jogou o verde fósforo corrosivo direto na garganta, cortada, aberta pela ardência furiosa que o libertava. Era como se um desejo masoquista retido e uma pequena parte de sadismo tivessem sido derretidos, destilados e dissolvidos no fundo daquele copo. Como ele mesmo. Sobrado no fundo do copo, olhando para a cara assustada do barman de baixo para cima, como se fosse disparar algo ou ele próprio contra alguém. E talvez fosse mesmo, caso um tal de Roberto não tivesse resolvido entrar entre os dois no meio da noite...

“Meia-noite em ponto! Eu sou Roberto Cavalcante e este é o Madrugada Ao Vivo. Chove muito lá fora...”. “Desculpe, já passa da meia-noite, e eu preciso fechar o bar”, diz o barman, fingindo constrangimento, aproveitando a deixa do rádio que em vinte anos esquecido entre os vidros de pepino finalmente servira para alguma coisa. “Mas pode beber essa aí, eu vou fechando as janelas e dando boa noite ao pessoal”. Os homens ao fundo do bar, que compunham “o pessoal”, amigos do barman pela mera ocasião de precisarem de um lugar onde pudessem deixar suas vidas do lado de fora, não passavam de cinco ou seis. Não dava pra saber ao certo, já que uns pareciam homens, outros, apenas sombras de homens. Do que foram, e do que poderiam ter sido. Ele sorve a bebida lentamente, absorvendo-a como uma esponja, enquanto os observa sentados ao fundo com um olhar que esconde certa familiaridade. Parecia, pela ironia do engano, ter enfim encontrado um lugar que poderia ter sido feito dele mesmo. Cada tijolo, cada peça de parquê, exalava seu cheiro.

Os outros iam afastando cadeiras e lançando moedas sujas às velhas mesinhas condenadas pela umidade. O barman já contornava o balcão para o lado de dentro cobrando o homem... “São quatro pelo uísque e cinco pelo absinto”. Mas ele fixa seus olhos no balcão. Parecia tê-los perdido por ali. Demora alguns segundos, mas responde. “Preciso contar uma coisa”. Os pés do barman o carregam dois passos atrás, enquanto as mãos ainda se apoiavam com força no balcão. “Eu vou matar um cara”. A resposta do outro foi imediata. Talvez nem fosse uma resposta, talvez estivesse apenas enganando a si mesmo para encobrir com palavras repetidas o que acabara de ouvir. “Olha, eu não quero saber. Por favor, são quatro pelo uísque e cinco pelo absinto. E vamos logo que eu tenho que fechar o bar...”. Mas ele, de repente, não ouvia mais. “Eu nem sabia que era capaz de sentir tanto ódio”. Deixou escapar uma risada no final da frase. Algo no limite entre o sarcasmo do desespero e um possível sadismo, uma satisfação antecipada pelo que estava prestes a fazer. O barman já tateava entre as garrafas de baixo do balcão por um velho 38 nunca usado...

“Ele quer que eu faça uma coisa, mas eu não vou... Não era pra eu estar aqui, eu nem sei o que estou fazendo aqui. Foi ele, ele quem me pôs aqui”. O Barman já tinha ouvido histórias, mas depois dos primeiros anos, não prestava mais atenção. Poderia prever o final de cada uma delas pela primeira frase, e todas, sem exceção, terminavam no fundo de um de seus copos. Mas teve a curiosidade fisgada desta vez, depois de tanto tempo. Esqueceu do revólver debaixo do balcão, e deixou que ele falasse... “Aquele sádico maldito... Quem ele pensa que é? Acha que pode controlar tudo, acha que sabe tudo sobre mim, tudo sobre você... Ele não sabe NADA!”, gritara ele pela primeira vez. Mas o barman não percebeu, estava mais interessado no sentido daquelas palavras pronunciadas sob efeito anestésico que no volume que de repente rivalizava com Roberto Cavalcante.

“Era pra eu me matar, aqui, na sua frente... Mas seria assassinato, não? Ele estaria me matando”. Visivelmente bêbado, já não distinguia muito bem o que falava. “Eu não estou bêbado!”. Sim, está. “Desgraçado!”. Cala a boca. “Eu vou te matar!”. Ele salta do banco e tenta puxar o revólver, que inexplicavelmente, fica preso no bolso da jaqueta ao mesmo tempo em que o tambor se abre, derrubando todas as balas. O Barman o observa atônito, e percebe que o melhor é acabar com o sofrimento de um pobre homem atormentado e sem expectativas... “Não!” – diz o coitado, numa tentativa vã de intervenção – “Ele não pode te controlar, não o ouça!”. O barman fica inerte por alguns segundos. Certamente imaginando de que modo poderia mata-lo de forma rápida e sem sofrimento. “Não, eu nunca matei ninguém”, diz o barman, que a propósito, fora assassino de aluguel na sua juventude. “É mentira! E eu tenho quarenta e cinco, posso parecer mais velho por causa do bigode”. Você não tem bigode. “Claro que tenho”. Eu não disse que tinha.

“Sim, tem! Eu estou na frente dele e digo que ele tem! Você nem sabe o nome dele, nem o meu... Fica com essa frescura de ‘homem’, ‘barman’”, dizia Alfredo, entre as mesas, enquanto Arnaldo continuava estático atrás daquele balcão. “Eu nunca tinha ouvido antes... Nunca tinha percebido essa voz, essa maldita voz na minha cabeça...” – Alfredo pausava sua fala com socos verticais desferidos furiosamente contra as velhas mesinhas. Arnaldo mantinha-se da mesma forma, quase como se estivesse economizando oxigênio, como se quisesse fazer seu coração parar de bater. – “Não, não está só na sua cabeça, eu o ouço também, disse que estou tentando me matar” – Não disse isso – “Se meu coração parar de bater, eu morro, pra mim é a mesma coisa” – Não, eu falava de modo... – “Mas se esse alguém está agora descrevendo tudo isso, quer dizer que fui controlado minha vida inteira?”, “É o que me perguntava enquanto bebia aquele absinto. Droga, eu odeio absinto...”. Não me interrompam! Vocês acham que existiam antes de eu me sentar aqui e começar a escrever? Eu criei vocês, dei-lhes uma memória e características para que pudessem figurar nesta página. Vocês não têm sentido algum fora daqui. “É mentira, é tudo mentira” – Arnaldo bradava, atropelando Roberto
Cavalcante, agora tímido e inofensivo em sua caixinha de madeira – “Eu tenho duas filhas”. Não tem. “Tenho, lembro delas hoje de manhã”. Lembra, mas não tem. “Eu sei que tenho, você não vai me convencer do contrário”. De qualquer modo, se tinha, não tem mais, porque vou criá-las e matá-las no próximo parágrafo. “Não!”.

Um grito. Um tiro. Alfredo esboça um sorriso cínico, posso vê-lo se aproximando do balcão. Sim... agora vejo a arma claramente. Arnaldo permanecia com as mãos fincadas sobre o balcão, como estacas. Mas espere... Duas gotas de um vermelho vibrante contrastavam mergulhadas no copo de absinto. Arnaldo cai, lentamente. Ou tudo parece mais lento...? Alfredo tirava o revólver do bolso furado da velha jaqueta, vangloriando-se em silêncio por ter aproveitado uma tola... distração... para recolocar ao menos uma das balas no tambor.

As teclas ficaram vermelhas de repente... Meus dedos estão rígidos... As letras, elas dançam, dançam na minha frente... “Eu sabia. Você não passa de mais um personagem, criado e controlado como eu. Estava na cabeça do Arnaldo, estava na minha...” – Não é verdade... Eu imaginei você. – “Por que não desviou, por que não controlou isso? Sabe porquê? Não passa de uma voz na minha cabeça! E que não cala a boca, que não cala boca!!!”

Duas... Havia duas balas no tambor... Irônico, no entanto, que ao cair ele tenha derrubado sobre si a garrafa de absinto. Acho que fui picado por alguma coisa... Mas eu consegui, afinal... Estava planejado, estava escrito, ele não tinha escolha. Desde que pisou neste bar e foi salvo pela boca grande do barman... Estranho... Ouço teclas, muitas teclas, vindas de algum lugar... Sim, está claro agora, é dos pepinos, no balcão alto da esquerda.

Enxergo com dificuldade. O teclado parece um imã forte. Um travesseiro de penas me convidando para um sono tranqüilo. Minha cabeça pesa uma tonelada, gravitando em torno destas letras pequenas, nas palmas das minhas mãos. Ao menos eu pensava que estavam... Mas preciso resistir, preciso restabelecer o controle sobre elas e digitar meu nome no final desta crônica...


Luis Hrewq... Luis Henri... Luis Hhnmnfhnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn...


Roberto Cavalcante

20.8.07

A redundância do olhar

Por Silvia Pereira Nunes


Os olhos são redundantes

Os verbos repetidos,

O calor é cruel

Os gestos imprecisos,

As ações são retornelos

As músicas refrões,

Os dias sofrimentos

Os dedos palpitações,

A boca é inútil

O coração é um órgão

Os pensamentos são vagos e vãos.

As ligações caóticas

Os caminhos parados

As pernas são cíclicas

Os sonhos jamais alcançados.

A água é escassa

A saliva trocada

As noites são claras,

Os objetos símbolos

Os números pessoas

Os joelhos fetiches.

Os carinhos são sussurros

Os beijos viagens

A vida uma miragem.

A mulher é flor

As unhas dor

O céu é limite.

O suor é sexo

A nuca sinceridade

Os doces, doces.

O imbecil é esperto

O silêncio sábio

As regras algo quebrável.

Os movimento inexistentes

Os momentos contínuos.

A mudança é difícil

As roupas estranhas,

O encontro uma batida

A fruta uma queda.

As coisas são coisas

Os conceitos padrões

As vacas soluções.

Os problemas cármas

O ponto é vista

O corte é aberto

A lógica é esta.

A rima é espontânea

As combinações telepáticas

O mundo loucura.

O querer é parco

O estar verbo

E o verbo repetido.

Interesse sujo

Dinheiro certo

Sono pecado.

O suspiro é cinza

O nariz vermelho

O Eu se perdeu-se.

A ingenuidade palhaço

O palco prisão,

O olhar é inquisidor

O outro explorador.

O simples jardim

O tinto é seco.

A casa viagem

A roda parada

A poesia um paradoxo.

A folha é uma tela

O cachorro é coxo

Os livros mazelas.

A liberdade é puta.

A cabeça é singela

As mãos meigas

As canelas são dentes.

O surreal é revisto

O oriente é viceras

O ocidente produção

A loucura impossível.

Agora um olhar

E os olhos redundantes

Os verbos repetidos.


Momento Social:

Eis o e-mail que recebi da adorável Betinha Mânica:

JZ-CONCEPT e HUGO BOSS estão promovendo um BAZAR com peças das marcaIODICE-SAMELLO-VICIO-ZOOMP-PUMA entre muitas outras Grifes conhecidas, a preços imperdíveis.

Parte da renda será revertida para a LIGA DE COMBATE AO CÂNCER e CENTRO ASSISTENCIAL À CRIANÇA COM CÂNCER.

O BAZAR acontece na Rua Fagundes dos Reis,esquina Travessa Júlio de Castilhos(atrás do Colégio Protásio Alves) das 15h. às 19h.



Momento Social - Parte II

O artigo "Tudo é questão de despertar a sua alma", de uma tal de Roberta Scheibe, está na home do site de cultura paulista CRONÓPIOS. Para ler, acesse: www.cronopios.com.br.

19.8.07

Telespectadores desesperados!

Por Giovana Santana Carlos
Na última quarta-feira, estreou na RedeTV! a versão brasileira de “Desperate housewives”, simplesmente traduzida para “Donas de casa desesperadas”, cujo enredo é sobre a vida de cinco mulheres e seus conflitos cotidianos, porém com um mistério a ser resolvido após o inesperado suicídio de uma amiga delas. Esse seriado tem feito muito sucesso no exterior, estando já na terceira temporada. E o Brasil infelizmente resolveu fazer a sua versão.

Comecemos pelo início, então... Na abertura do original é mostrada a mulher (leia-se seu papel na sociedade) ao longo de vários séculos através de imagens e pinturas, que remetem a antiguidade, o renascimento e até mesmo a pop art. Um exemplo é a pintura renascentista de Jan van Eyck, do casal Arnolfini. Sempre achei muito boa essa abertura, tanto que quase a escolhi como objeto de pesquisa para minha monografia, para um estudo semiótico. Pois bem, aqui toda essa complexidade visual e textual se perde em imagens óbvias e simplórias, como dois pares de pés em cima de uma cama se acariciado enquanto em baixo há outro par, dando a idéia de adultério.

O enredo é igual ao norte-americano, as falas e situações são as mesmas, mais que isso, até as roupas e algumas cenas são parecidíssimas, em que se tem o mesmo plano e ângulo, sugerindo muito mais uma imitação barata do que versão nacional. O detalhe é que apesar de ter atrizes brasileiras já consagradas como Sônia Braga e Lucélia Santos, grande parte do elenco secundário tem suas falas dubladas. Isso mesmo, as protagonistas e seus respectivos pares românticos têm mantidas intactas suas falas, mas outra parte do elenco, que fala espanhol (as gravações estão sendo feitas na Argentina), é nitidamente dublada: dá aquele estranhamento quando algum desses abre a boca e o som não está “exatamente” coerente com a movimentação labial! É...ainda não entendi qual é a “jogada” deles...mas a tosquice não é pouca. Embora os cenários e toda essa parte visual (vestes, acessórios, objetos) estar muito bem produzida, a trilha sonora é melosa demais, lembrando novela mexicana.

Tudo bem, foi apenas o primeiro capítulo visto por quem acompanhou o original...mas por que será que sempre que o Brasil resolve fazer sua versão de programas que fazem sucesso lá fora (e aqui também na TV paga), sempre parece inferior, de menor qualidade? Bom...quem tiver o interesse de averiguar os fatos, tem reprise do primeiro capítulo no domingo, às 22 horas. As donas de casas desesperadas aparecem na RedeTV! nas quartas, às 23 horas.

15.8.07

O pão de cada dia

Por Roberta Scheibe

Saí de casa para comprar pão. Pensei em ir a pé: Aproveito o sol, vou e volto bem mais rápido e ainda poupo um dinheiro, já que os tempos andam bicudos. Botei os óculos de sol que, em certa ocasião, herdei de minha mãe. Coloquei-os e saí para dialogar com o astro rei.

Ao abrir a porta do prédio e deparar-me com o calor e a claridade, vejo do outro lado da rua o cachorro da vizinha. Um legítimo cachorro de novela. Não sei sua raça e nem idade. Pra mim bicho é lindo e querido. Isto basta. Pois o cachorro da vizinha, como ia dizendo, é daqueles finos. Grande, pêlo branco sedoso. Uma peça rara e majestosa. Um lindo cão pertencente a uma família honesta e querida. Minha única objeção a ele é seu nome: Saddam. Como diria um amigo de um amigo meu para contrariar a todos: “Tá certo!” E ele estava deitado no chão, com a cabeça escorada num ferrinho horizontal do portão da casa. Assim, com uma cara de paisagem, como chamo. A preguiça batendo na alma.

Mas como meu objetivo era chegar ao mercado, fui andando. Um mercadinho perto de casa, desses em que as pessoas conhecem a gente. Fui pensando no meu trabalho e no cachorro. Caminhei olhando o outdoor da coca-cola e vendo os restos de verde que restam no bairro onde moro em Passo Fundo: algumas árvores num beco e um gramado numa escolinha de criança.

Chego no mercadinho e o dono do negócio, ao telefone, já me abana. Era o meu amigo Nenê. Abanei e fui direto para a parte do açougue e padaria. E eu tinha uma missão: três reais no bolso somente, mas somente, para comprar pão. Antes de sair de casa eu já havia questionado a diarista que todas as terças-feiras visita a minha casa:

- Marga....(seu nome é Margarete)...

- Mmmmm. (Ela balbucia muito mais do que fala)...

- Tu acha que com três reais eu compro pão aqui no centro? Porque tu sabe, né, aqui o troço anda caro.

- Pois é. Lá no meu bairro com três reais dá pra comprar 30 pãezinhos!

- Sério Marga???? Então um dia te levo e aproveito pra comprar pão.

- Mmmmm.

Já diante dos pães cheirosos eu abri o jogo com o cara que pesava os pães. Cara não, guri. Eu o conheci quando ele ensacava as compras, no mesmo mercado. Agora ele já casou e trabalha no açougue-padaria. Uma grande evolução. Olhei pra ele e disse:

- Amigo. Tenho três pila. Quanto dá de pão?

- Dá 15, 20 cacetinhos, dona Roberta.

- Tudo isso? Opa, então o negócio não anda tão mal. Ainda está caro! Mas pensei que estava mais... Me dá só oito!

Pra quem chegou para pedir quatro, já saí no lucro. Ainda no final comprei um chocolatinho de trinta e cinco centavos e de lambuja, por ser uma cliente simpática, ganhei um desconto de cinco centavos. Enquanto eu pagava escutei a rádio que estava sintonizada no local. Um ouvinte tentava passar a perna no locutor, imitando um alemão. Quando o locutor, até então garboso, como todos os locutores, quase perdeu a compostura, o falso alemão desligou o telefone. Chorei dando risada e fui embora.

Voltei pra casa balançando a sacolinha de pães e pensando que a vida é muito mais tranqüila do que a gente pensa. Nós é que a complicamos muito.

13.8.07

PRA TODOS OS GOSTOS!

Giovana Santana Carlos*

Eles correspondem ao maior público leitor de quadrinhos no mundo. As estatísticas são de assustar. Pra se ter uma idéia, em 2002, quase 40% do que foi publicado no país correspondia a HQ`s e, em 1995, existiam cerca de 15 histórias para cada habitante. Mas, não é só isso, a forma como eles fazem os quadrinhos é muito diferente da ocidental. Você nunca tinha ouvido falar sobre os mangás, as histórias em quadrinhos do Japão?

O mercado de quadrinhos japoneses é muito peculiar, por vários motivos. O que, talvez, mais chamaria a atenção de um ocidental é a grande segmentação: há mangás para meninas, meninos, crianças, adultos (mulheres e homens) e até mesmo para idosos. E, olha que não é só isso, também existem uma grande opção de enredos que abordam desde luta, esporte, romance, erotismo, história e podem até mesmo serem informativo/educacional. Além disso tudo, esse mercado é ligado a outros como, por exemplo, ao dos desenhos animados (conhecidos como animê), ao do cinema e ao da música.

Nos últimos anos, esses produtos vêm invadindo o Brasil, aliás, o ocidente no geral. No nosso caso, começou na TV aberta com os animês e os live-actions (espécie de seriado, como Power Rangers). Nos anos 80, duas décadas depois da chegada desses programas, viraram um gosto nacional. Provavelmente você já deve ter ouvido nomes como Kamen Raider, Jaspion, Pokemon e Dragon Ball... O sucesso foi tanto que – li em algum lugar que mais da metade dos desenhos animados que passam na televisões pelo mundo hoje são nipônicos -, a partir de 2000, foi a vez das revistas. Atualmente, boa parte do que se encontra nas bancas e livrarias brasileiras é mangá, que vem dominando esse mercado.

Curiosamente, os japoneses nunca fizeram seus quadrinhos pensando na comercialização pro exterior. Assim, as histórias são feitas para aquele povo, ou seja, são pensadas para aquele público específico, em seu contexto cultural. Moral da história: não tem nada a ver com o mundo ocidental (com algumas exceções, obviamente). Alguns especialistas apontam a construção de personagens mais humanos, com seus dilemas e problemas, como uma das explicações sobre o gosto do leitor ocidental pelo mangá. De qualquer forma, os fãs não param de crescer. O que é de se esperar, já que é possível encontrar todo e qualquer tipo de situação nesses gibis. Não tem gosto que não possa se satisfazer devido a isso, o que pode acontecer é o pouco conhecimento de títulos, a falta de algumas traduções, ou ainda, um simples desinteresse. E, por favor, não os compare com os quadrinhos ocidentais, pois são coisas diferentes!

* Giovana fez a monografia de conclusão do curso de Jornalismo sobre o fenômeno Mangá.

8.8.07

Zé, fale comigo!


Por Luciele Copetti

Ele estava com os olhos fixos na televisão. Eram espaçadas às vezes em que seus cílios piscavam, seus dedos entrelaçavam-se uns aos outros, como se estivesse fazendo figa. Como se algo lhe preocupasse, mordia o lábio inferior. A mesma seqüência: os olhos, os cílios, os dedos, os lábios. A cabeça baixa, a mão descendo da boca ao queixo. Parecia estar tão distante, e estava. Enquanto diziam pelas ruas que tudo ia bem, enrolava calmamente seus pés no cobertor.

Enquanto isso: O Futebol Feminino do Brasil tem grandes craques, os casos da aviação brasileira são uma caixinha de surpresas, a jornalista da cidade pequena dá dicas para saber se você está sendo traída. O ex-ministro Furlan, vai até lá, visita parentes, e diz que não pretende voltar à política. Enquanto isso, no dia do descanso, chove 120 milímetros, e o Rio que corta a cidade fez das ruas a sua extensão.

Alguns, jogam futebol. Outros, lixo pela janela. Outros, ainda, jogam com as palavras, outros nem estas tem para jogar. Alguns vendem-se para outros países. Decepcionante! Além do mais, seu cão e seu gato, insistem em pensar que são gente. Salustiano, o gato, olha fixo para os olhos de Zé, resmunga algum miado, e olha para Dilma. Ela, não gosta dos seus pêlos cinzas e brancos que ficam espalhados pela casa. Irrita-se quando começam a trocar palavras e miados. Irrita-se ainda mais, quando seu time está perdendo, e Zé começa a conversa com Salustiano. Margarete, é tri gente boa e esperta pra cão! Leva as cartas para o Zé, senta no sofá, ajeita as patas em cima do envelope, e aguarda.

Como tudo quanto fosse natural. Ele fingia olhar para cima de vez em quando. Falava com estranhos, olhava ao seu redor quando entrava no elevador, fechava os olhos e caminhava, até esbarrar em alguém. Lembrava-se assim da sua infância e como as coisas tomaram outras dimensões. Como aqueles lugares imensos, aqueles morros altos, aquela árvore, aquela casa, agora eram tão pequenos. Salustiano não entendia nada de dimensões e espaços. Mas, escutava atento os pensamentos de Zé.

Não. A vida não é essa maravilha, criança. Mas, pule do mesmo jeito, e ache o seu aconchego em algum canto. Eram palavras, cheiros, gostos, sons, carícias e abraços, que vinham passear no horário do jogo. Ele queria falar sobre coisas simples, queria ir até o pátio da sua casa, sentar na grama e comer bergamota ao sol. Com um sorriso no rosto, seus olhos brilhavam. Lembrou-se da noite em que conheceu Dilma. Foram trocas. Primeiro de olhares. Semanas depois, foram às palavras, e a cada dia sorriam mais, trocavam bilhetes, mais olhares, beijos e mais beijos, e abraços apertados. Trocavam de lugar no sofá, de dias para a organização da casa, trocavam as meias, as coisas de lugar. Ele lembrava de cada instante, das coisas mais simples que ela gostava.

Eram dias de outono. Dias de sol. Quentes tardes que iam se findando com um vento agradável, gelado. Como ela gostava. As noites de outono costumavam serem belas. Seriam mais, se não sentisse um vazio enorme dentro do peito. Segurava com toda a força para não chegar aos olhos.

(...)

- Te carrego comigo, ele disse.

(...)

- Zé, fale comigo!

Salustiano resmungou, enquanto Dilma agarrou Margarete. Um miado, como de tristeza e reclamação, e o gato deitou-se ali, ao lado do corpo de Zé. O homem de Dilma, o torcedor do time rival, o amigo, o boêmio, o poeta, o amante, o marido, se foi.

Ainda sobre o amor... Ela enchia malas, guardava. Enchia caixas, empilhavas. Ouvia canções. Foi-se os papéis, as meias, os retratos, os escritos. Ficou Margarete, Dilma e Salustiano.

- Como se agarra o mundo com uma mordida, Salustiano?


6.8.07

Eis nossa mais nova colaboradora: leia a 'croniqueta' inédita de Fabiana Beltrami!


(MSN)

Por Fabiana Beltrami

O que estará entrando pelos ouvidos será a trilha do filme Last Tango in Paris. É com o tilintar dos dedos, com os lábios sendo mordido pelos dentes e com poucas letras é que se podem conectar os sentimentos. Escrever num teclado traz o tempo de pensar o que dizer, traz a vontade de se ter, uma vontade que jaz. Nunca será futuro, estará preso no presente - uma seresta sonhada, um humor negro. A modesta não estará visível nestas palavras formadas por poucas letras e digitadas rapidamente. Ela estará em desabalada carreira, inundada por sentimentos perdidos pelo lado de fora e presos pelo lado de dentro. O entorno não terá importância, estará em bites. A importância real será simples, será por minutos, será vontade. Esta permanece na fissura. No conectar-se com o desconhecido e lambusar-se. A protagonista é a presença real da ansiedade, que permanece mesmo não estando on-line: liquidificador de sentimentos, corrente elétrica fadada a dar curto-circuito, um violão sem cordas. O computador fica úmido e é necessário o secador de cabelo para aquecê-lo. A delonga é profunda, o computador não é de última geração, são muitas batidas artificiais de teclas que não são rubras, nem jovens e muito menos pensantes. Ainda penetra nos meus ouvidos - Return (Tango), La Vuelta.

3.8.07

Leia texto inédito de Daniel Dalpizzolo. Neste artigo, Daniel fala do filme "O Bandido da Luz Vermelha"!


O debochado !

Por Daniel Dalpizzolo

Transcendental. Sujo. Poético. Imoral. Amoral. Transgressor. Impostor. Alusivo. Corrosivo. Incisivo. Abusivo. Doentio. Fálico. Pigarrento. Folclórico. Emblemático. Insano. Inovador. Referencial. Exponencial. Documental. Bizarro. Translúcido. Mordaz. Cínico. Cafajeste. Irônico. Lacônico. Ostensivo. Extensivo. Anacrônico. Moderno. Maléfico. Ácido. Corrosivo. Brutal. Anormal. Evasivo. Inebriante. Extasiante. Extravagante. Confuso. Difuso. Sádico. Nervoso. Cáustico. Frenético. Poético. Político. Apocalíptico. Visionário. Revolucionário. Performático. Sarcástico. Sacana. Surtado. Marginal.

Marginal... O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, fora o marco inicial do movimento cinematográfico brasileiro intitulado Cinema Marginal – título que é praticamente auto-explicativo, não é? Fã ensandecido de Welles e Godard, o jovem diretor (22 anos, meu bem... 22 dois anos...) praticamente redefinira o andamento do cinema nacional, atribuindo aos valores conquistados durante o movimento do Cinema Novo um ar mais urbano, sujo, deplorável, sem contar com aquele nacionalismo barroco e tentando se desvincular do intelectualismo típico das obras de Glauber Rocha ou Walter Hugo Khouri.

Junte a tudo isso uma gama praticamente interminável de referências e sátiras sociais, policiais, políticas, jornalísticas e cinematográficas, e o resultado é uma experiência repleta de singularidades, sem qualquer linearidade nem muito menos pretensão de “contar uma história”. É quase aquilo que Godard havia tentado fazer com seu Acossado, só que muito mais funcional e visceral – diferentemente de Godard, que procura simplesmente ir quebrando sua narrativa, mas sempre retornando à idéia original, Sganzerla se abstém de qualquer mote mesmo, surtando cada vez mais à medida que o filme avança, sem se preocupar em tentar encaixar uma situação à outra.

O diferencial de O Bandido da Luz Vermelha é o deboche que faz a essas referências utilizadas para sua composição. O diretor não se contenta em apenas citá-las, tudo é feito de uma forma que transpareça claramente a sarcasticidade da obra. Cria uma transposição do cinema europeu, múltiplas vezes citado e recitado dentro da “narrativa”, para o ambiente em que a “história” se desenvolve. Sim, porque, afinal, O Bandido da Luz Vermelha é um filme de terceiro mundo, filmado no terceiro mundo, sobre pessoas do terceiro mundo, com pessoas do terceiro mundo e, principalmente, para pessoas do terceiro mundo.

Em virtude disso, o que se vê durante a obra não são o charme e o requinte de Paris, nem mesmo uma tentativa de recriação de Londres, Veneza ou Barcelona. A estética é suja e decadente, as locações são claramente suburbanas, os cenários são compostos pelo lixo, tanto os detritos materiais quanto o lixo verbal, o palavreado pesado, imoral ou, até mais do que isso, amoral. A prostituição, a violência, as drogas, tudo é mostrado sem o mínimo de pudor, já que, diante da idealização realista do diretor, tudo isso contribui para a veracidade visual e contextual da idiossincrasia fílmica.

O resultado de toda esta mistura é um produto invariavelmente bizarro, esquizofrênico, um turbilhão de mensagens surtadas que acabam resultando em um trabalho de viril representatividade dentro do cinema nacional. Afinal, são poucos os filmes que conseguem ser revolucionários tendo como principal fonte o referencialismo, utilizando-se de idéias pré-concebidas e ironizando tudo aquilo que estava ao seu redor. Não fosse o fato de Luis Sérgio Person ter feito um pacto com o demônio e realizado a obra-prima São Paulo S.A, este poderia ser facilmente considerado (em meu gosto pessoal) o melhor filme já produzido aqui no país. É tudo aquilo que aquela (sorry) porcaria de Acossado quis ser, mas não conseguiu...

(... E o final, totalmente alusivo a Pierrot Le Fou, do próprio Jean-Luc Godard (troque a pólvora pela eletricidade e a poesia pela ironia), é um dos principais exemplos de que é possível construir-se uma citação sem que ela soe simplesmente como uma recriação do produto original – e olha que a fonte em questão é um de meus filmes preferidos, ou seja, a “cópia” estaria previamente destinada a ser recebida com desgosto por minha pessoa [e, no entanto, quase extraíra um orgasmo fulminante de meu cérebro – e não apenas dele]...).

“O Terceiro Mundo já explodiu e o lixo está contaminando o universo!

Salve a boçalidade do submundo!

Quem tiver de sapato não vai sobrar, não vai sobrar, não vai!

O negócio é o seguinte:

Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba!"