24.8.07

A dança e o parto

Ana Maria da Rocha

Barulho de objetos caem sobre o metal. O cheiro de álcool entra pelas suas narinas. Algo impede o movimento do seu braço. Sara recorda onde está. É muito cedo, o que implicaria num dia longo demais e isso ela não quer, decide fingir que está dormindo. Teria enganado qualquer um, exceto o seu acompanhante. Davi gabava-se, em família, de ser o único que a irmã não enganava. Bom dia, bicho preguiça! Como resposta um resmungo abafado pelo lençol. Por que as pessoas costumam tratar os doentes dessa forma infantilizada? Por mais que tentasse não conseguia mais manter os olhos fechados, as abomináveis fadinhas da luz vinham forçar suas pálpebras e nem os tapas, que certamente atingiram uma ou outra, serviram de argumento para espantá-las. Enfermeira Laura compareça ao Posto 4. Doutor Ricardo, doutor Henrique está lhe aguardado na sala 15. Esfregou bem os olhos para que não sobrasse nenhum vestígio de sonho. Coisas que sempre estão no ar e a noite desabam sobre os lençóis. As vozes que a atormentavam nas noites da infância voltaram... talvez ela ainda seja criança e tenha sonhando ser gente grande - isso justificaria o tom de voz do irmão. Isso! Ela é só uma princesinha em sua cama rosa, rodeada por sua corte de bonecas de porcelana. Fecha os olhos.

Faz sol, da cozinha a mãe ri vendo a filha correr atrás da própria sombra, tentando capturá-la, entre passos de balé. Essa menina tem cada idéia. Depois do almoço é a hora de fazer preguiça. Sara arrasta o irmão para fora e deitam-se sob o sol, brincam de descobrir objetos e animais e até criaturas imaginárias no formato das nuvens. Eu queria que as nuvens fossem de algodão doce. Quando come algodão doce Sara fica lambuzada até as orelhas. Por que? Pergunta o irmão que prefere picolé. A mãe não disse que o papai tá lá do céu? Então, ele podia comer algodão doce e lembrar de mim, daí não ia se sentir sozinho.

A enfermeira volta com o café da manhã. Diz que a cirurgia foi marcada para a tarde do dia seguinte. Davi insiste para que ela coma alguma coisa, está muito magra. Ela ri e diz que o câncer foi a dieta mais eficiente que já fez. A comida do hospital enoja-a e ela não acredita na higienização daquelas xícaras e talheres. Pede uma maça. Lembra das dentadas que deu na maça que a serpente lhe oferecia no sonho. Contou para o irmão, riram juntos. Nunca fora uma boa cristã, dos sete pecados capitais não teve um que não cometesse. A tia Letícia rezaria dobrado pela minha alma se soubesse! O médico entra para examiná-la, insiste que ela tem boas chances. Sara sabe que está mentindo, sempre que as pessoas insistem em algo é porque estão mentindo. Quando fala a verdade, a pessoa acredita-se suficientemente convincente e fala só uma vez. Mas quando mente, reforça a idéia para tentar convencer a si mesma do que está dizendo.

Mãe me leva no circo, tem palhaço, elefante e maça do amor. Mãe se duas pessoas mordem a mesma maça do amor ficam apaixonadas? A menina imita a bailarina que aparece na televisão. De onde tu tirou essa idéia guria. Tua imaginação não tem limites. Chove muito lá fora e Sara está na janela namorando o temporal. Tinha medo, mas o vento fazia a chuva dançar tão bonito. Mãe, eu quero dançar que nem a chuva! Mas a noite quando os galhos arranham o vidro da sua janela, puxa a coberta e chama seu exército pessoal, mãe, irmão e cachorro, para defendê-la. Por que a noite tá chorando e o vento geme desse jeito? Ela acredita que é só chorar um pouquinho e todos os seus desejos são atendidos e que se chamar a mãe a dor passa.

Mãeeeeeee! O irmão que tinha cochilado na cadeira, acordou com o grito. Já era passado do meio-dia, Sara suava muito e estava febril. Davi achou melhor chamar a enfermeira. Quando voltou para o quarto encontrou-a aos prantos. Afinal admitia que tinha medo! Amanhã daria a luz à um tumor que, ironicamente, alojara-se onde ela nunca permitiu que nenhuma forma de vida se desenvolvesse. Já, esta forma de morte, não teve como evitar. Como seria seu primeiro e último parto, ela, por carinho ou masoquismo batizou o tumor de Miguel, o nome do filho que nunca teve. Apesar de acreditar-se dotada do dom da premonição, ela não sabia que sairia dali. Que voltaria a dançar e encontraria o Antonio numa revisteira e tomariam um café e os sentimentos... os sentimentos até então represados, transbordariam deixando-os encharcados.

Na faculdade, seus olhos castanho esverdeado somados a pele quase negra, garantem que não passe despercebida, mas é um tanto quanto difícil, dizem seus namorados que não permanecem no cargo mais que um mês. Cursa o quarto semestre de Letras, quando vai pela primeira vez ao quarto do Antonio. Onde descobre o sexo dos anjos, porque os anjos têm sexo sim. Simultaneamente, dança em um grupo amador, adora balé clássico mas não se encaixa no perfil das bailarinas do teatro municipal, é grande demais, ossuda demais, escura demais. A menstruação atrasa, ela não quer o filho, esconde do Antonio. É convidada para dançar numa companhia no exterior. Antonio terminou a faculdade de Direito e passa num concurso público. Ela dança em Los Angeles, sem anjo nenhum. Ele em Curitiba com uma dançarina de um clube noturno.

Sara no palco magnetiza. Os homens caem, literalmente, aos seus pés. Tem um que adora lamber a sola suada do seu pé depois de cada apresentação. Outro, não conto! Mas colo, com direito a carinho e sossego ela só encontrou no peito de dois homens e um era seu irmão e outro seu amigo. Os homens que têm só lhe trazem angústia e a sensação de inadequação. Sempre atiram em sua cara que seu jeito de amar está errado. E como se deve amar?! Berra dentro de um restaurante elegantíssimo. Ela era sempre demais. Louca demais. Passional demais. Indiferente demais. Vibra demais. Certinha demais. Tensa demais. Nunca boa demais. Minto teve um que disse que ela era boa demais. Mas foi uma daquelas histórias que os homens contam quando traem suas mulheres e não conseguem mais conviver com a consciência culpada, daí inventam desculpas para passar a responsabilidade do fim para elas.

Anoitece e ela não para de indagar o irmão. Ele já havia traído? O que tinha de errado com ela? Por que não conseguia levar a vida fácil como a maioria das pessoas? Uma mentira dita mais de mil vezes, vira verdade? Mentiras sinceras interessam mais? Por que o Antonio não percebeu o quanto ela o amava? O irmão achava que aborto era crime? O câncer era um castigo? Existia inferno? Sara transpira excessivamente. Fecha os olhos. Onde está a mamãe? Quem vai me dar colo? Cadê o meu filho? Quem quebrou a minha boneca? Mãe, olha esse passo, fiz direito? Davi preocupa-se, pensa que ela está delirando.

Dia quinze de junho completou trinta e cinco anos. Não comemora. Os exames que a ginecologista pediu indicaram a existência de um tumor no seu útero e em estágio avançado. Sara acredita que produziu ele da mesma maneira que fabrica suas enxaquecas. Lembra que faz muito tempo que não come algodão-doce e nem maça do amor, estava amarga demais. Magoa as pessoas a sua volta, umas para não confessar sua fraqueza e a dependência, outras para que sintam menos a sua falta. Era o fim, morreria de culpa, remorso, castigo divino expresso na forma de um câncer.

Acaba de entrar na sala de cirurgia. Pede para ser cremada. Para que suas sapatilhas sejam jogadas ao mar num dia de tempestade. Confessa que foi ela que arrebentou as cordas do violão que Davi ganhou no natal de 74. E que ama o Antonio. Mãe me cuida. Tenho medo. Filhinho não chora já estou indo. Ela reza baixinho.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ana!!!! Parabéns! Esse texto precisa continuar..quero saber mais sobre a Sara!!!!!! Um romance..isso! tem que se tornar um romance!!!!!
Beijosss
Fabi Beltrami

Anônimo disse...

ou em capítulosss!!!!
Parabéns!!!
Fabi Beltrami

Roberta Scheibe disse...

Putz, também gostei muito. É um conto profundamente triste, e ao mesmo tempo profundamente belo...
Gostei mesmo!!

Tem que mandar mais textos ao Santa Saliência... hehe

Bjos

Raquel Ditz disse...

Ana!!!!Já havia te dito que este texto era tudo de bom.