30.5.07

Na fronteira!

Escritor Sérgio Capparelli fala da linguagem da crônica

Sérgio Capparelli divide-se entre o jornalismo e a literatura. É vítima dos prazeres e incoerências praticadas por ambos os gêneros. Nesta entrevista concedida na VI Semana Acadêmica da Faculdade de Artes e Comunicação, na sala dos professores, em meio a um café e outro, Capparelli, escritor e jornalista, doutor em comunicação, autor de vários livros da relação do leitor com a internet, falou em uma hora sobre o lado híbrido entre literatura e jornalismo e também do papel da crônica como fronteira entre os gêneros. Vale lembrar que Sérgio Capparelli foi e é um grande repórter. Uma de suas reportagens memoráveis foi quando ele se internou no São Pedro de Porto Alegre para apurar informações sobre o modo em que os pacientes eram tratados. Depois da reportagem foi comemorar os prêmios recebidos lá no Sítio do meu grande amigo João Carlos Tiburski, o mestre Tiba. Com a palavra, o fronteiriço Capparelli.


P- Nos atuais jornais da grande mídia, existe um diálogo entre jornalismo e literatura? Afinal, elas são amigas ou amantes? E até que ponto, no jornalismo, a literatura se bitola à crônica?

R - Eu acredito que a literatura aparece na crônica. Mas a crônica é um gênero inicialmente jornalístico e que passa a ser literário, em termos de aceitação e legitimação. E em alguns cadernos culturais a literatura usa o jornal apenas como suporte. Então o jornal não é propriamente jornalístico, porque se há um conto, ou uma poesia, não significa que seria um gênero jornalístico, mas um gênero literário que se utiliza do caderno como suporte. A literatura também pode aparecer nas narrativas jornalísticas; é o caso das reportagens.

Nos anos 60 e 70 havia a revista Realidade. Não se pode dizer que a revista tinha o propósito deliberado de aproximar literatura com jornalismo, mas no momento em que eles contrataram João Antônio para ser repórter - e na verdade ele era um contista, vindo da literatura no sentido legítimo e tradicional-, é lógico que João Antônio não vai fazer uma assepsia e passar a escrever burocraticamente, como às vezes se pede a um jornalista que está saindo da universidade. João Antônio trouxe toda a técnica literária de construção de personagens, ponto de vista e discurso indireto livre. Estas questões batem contra lead e pirâmide invertida. No caso da revista Realidade havia a intenção subjacente, até porque ela aparece numa época em que nos EUA está se vivendo o chamado New Journalism, que não é tão novo, porque desde o início do século houve grandes escritores trabalhando no também “novo jornalismo”. A palavra ‘novo’ é um tanto aleatória e imprecisa, em que certos jornalistas, com pretensão a escritores e romancistas, empregaram técnicas literárias estilisticamente dentro do jornalismo e da grande reportagem. No Brasil, nesta época, em 60, 70, o Jornal da Tarde, em São Paulo e O’Pasquim, no Rio de Janeiro, revolucionam a linguagem do texto, em termos do coloquialismo. O outro extremo seria o Estado de São Paulo ainda com a linguagem encasacada. Na narrativa há uma aproximação com o jornalismo.

Não existe algo que seja a essência da literatura, buscada aqui ou lá. Falo a partir de uma polissemia no termo literatura. Ela também passa por uma legitimação do leitor e da sociedade. Não existe um essencialismo. Se estabelece um diálogo em que a literatura e o livro só existem na mediada que existe o leitor. E estes leitores e outras instituições, como a universidade, é que legitimam a leitura. Certos livros que não eram considerados literatura passam posteriormente a serem considerados. Um livro escrito enquanto história pode ser considerado jornalismo e literatura. “Declínio na Queda do Império Romano”, é um livro que originalmente é da história e passa a fazer parte do acervo literário. “Os Sertões” de Euclides da Cunha, escrito no início do século XX, primeiramente é um livro jornalístico e que passa a fazer parte da literatura.

Mas a maior mudança é a partir dos anos 60, quando o romance e a ficção estão em crise, que os escritores Truman Capote, Norman Mailer e Tom Wolfe se propõem a fazer um outro tipo de reportagem e narrativa jornalística. Alguns autores vão dizer que há uma transformação e fragmentação e que a literatura não vem apenas da fantasia. Ela vem também da realidade. E vão dizer, quase que na definição de “Drama” - buscando muito antes em Aristóteles-, que existe a literatura de ficção ou imaginativa (que são os fatos que poderiam ter acontecido e os fatos que aconteceram, onde existe uma literatura contadora de fatos) e a literatura empírica (aquela que busca os fatos, narrando-os com o acervo de técnicas próprias da literatura). Estas grandes reportagens aparecem em revistas ou grandes jornais nos suplementos de final de semana, e através dos livros reportagem. “Araceli meu amor” do José Louzeiro é uma reportagem construída em forma de livro. E esta realidade é um pouco ficçionada. Truman Capote escreve “A sangue frio”. É uma notícia, um fato que aconteceu, que ele reconstrói os fatos em termos literários.

P- Quais os limites entre ficção e realidade?

R- O jornalista vivia dentro do mito da objetividade, contando os fatos que aconteceram. Depois apareceu a semiótica e as análises de discursos e se pode dizer que os fatos são reconstruídos segundo a sensibilidade do jornalista. O fato é apenas uma das construções ou reconstruções dos fatos entre muitos outros. Isto torna mais permeável e indistinto os limites entre realidade e ficção e o conceito de literatura e jornalismo se torna híbrido.

A partir dos anos 60 e 70 o impulso que havia para o livro-reportagem e a narrativa jornalística enquanto literatura perde o fôlego, talvez pela própria transformação do Brasil, em que a tendência maior do jornalismo se torna o jornalismo investigativo.

Não é a corrente dominante esta aproximação entre literatura e jornalismo, mas aparece em alguns jornais; outros não aceitam. Um jornal como o Estado de São Paulo dificilmente vai permitir um tratamento mais literário. No entanto o Jornal Tarde, do grupo Estado, permite um texto criativo, com técnicas literárias usadas na construção da reportagem.

P- Quem são os novos jornalistas que na sua opinião conseguem aliar jornalismo e literatura?

R- Na verdade esta geração praticamente terminou. José Louzeiro morreu, Valério Maine eu não sei, Marcos Fermann morreu e João Antônio morreu. Esta época de ouro que atingiu um certo apogeu, não existe mais. Se formos pegar um livro atual como o do Caco Barcellos, por exemplo, ele pode ser de literatura, no sentido de literatura empírica. Mas já é também muito jornalismo investigativo bem escrito.

P- Como você vê a qualidade dos cadernos culturais?

R- É outro aspecto da evolução do jornalismo. O Nelson Werneck Sodré coloca 1930, outras pessoas colocam um pouco mais adiante a modificação e transformação do Jornal do Brasil em 1953, 1954. Até então o jornal era político partidário. Na verdade ele era suporte da literatura. A gente estava falando da crônica, mas há um outro gênero que vem da literatura e que utiliza o jornal como suporte, e que adota aspectos da linguagem do jornal enquanto edição, que é o folhetim. Há uma tradição desta aproximação muito grande. Tentaram ressuscitar o folhetim, como a Folha de São Paulo, como a própria Folha da Tarde de Porto Alegre. Mas colocando na época histórica do folhetim, que é quando José de Alencar e Machado de Assis escrevem em jornais, Olavo Bilac é da publicidade mas publica poemas nos jornais, ou utiliza uma certa linguagem técnica e poética para fazer anúncios publicitários, e são assuntos que saem em jornais, então há esta primeira época, e há este jornal ainda não-empresa, não fazendo parte das indústrias culturais. No momento em que se transforma em empresa, também se especializa em certos gêneros que se fragmentam em páginas específicas em diversas editorias. Uma parte do jornal que era a definição do político-literário, esse literário passa a ser um caderno separado. A informação e a notícia tomam uma preponderância, uma hegemonia e relega a literatura para um final de semana dentro de um caderno. Agora nesse início, os cadernos traziam a crítica literária num sentido acadêmico. Até 30,40 anos atrás, o caderno de Cultura do Correio do Povo trazia colaboradores do campo acadêmico escrevendo academicamente e fazendo críticas literárias no sentido acadêmico. A Zero Hora começou um pouco com isso. Mas durante muito pouco tempo, porque Zero Hora e o Correio do Povo são ultrapassados nesses modelos de cadernos culturais das indústrias culturais que se consolidam no Brasil nos anos 60 e 70.

Além dessa especialização dos jornais - e quando se fala em indústrias culturais, mesmo que a literatura continue tendo um papel de referência não dominante - ela começa a ter que disputar com outras formas de expressão das indústrias culturais. A primeira delas vai ser o cinema. Neste sentido há um espaço no caderno de cultura e a partir de agora se deve falar de filmes e crítica cinematográfica. Mas a principal mudança dos anos 70 é a criação da indústria fonográfica. Se um jornal se baseia em atingir o maior número de pessoas, de certa maneira esse sentido acadêmico da literatura passa a ser interessada apenas a uma elite, que continua ainda a ser do interesse do jornal atingir, porque ele é legitimado por esse grupo de leitores. Mas financeiramente interessa atingir um número maior inda, que são as pessoas que vão ler o caderno de cultura ou legitimar o jornal como um todo, em termos culturais e tendo que aceitar páginas sobre televisão e música popular. Começa a haver um tratamento diferente para os textos. A crítica que era literária e feita academicamente passa a ser feita por jornalistas especializados, que não fizeram e não vêm do campo da literatura e fazem uma crítica literária, jornalisticamente falando. E nisto interessa o maior número de pessoas. Assim a seleção dos livros e dos produtos da literatura serão outros. Por que falar de Machado de Assis se posso falar de um Best-Seller? Isto interessa a um número maior de pessoas dentro da lógica do jornal. Vira uma crítica de orelha de livro e que às vezes é isso mesmo, uma reprodução de orelha de livro.

Antes a literatura pegava o jornal como suporte, entre aspas pura, mas agora é o jornal que prende a literatura em termos da venda de espaço para a publicidade. Não é nem melhor nem pior. É outra coisa. A crítica literária acadêmica passa a ser especializada dentro de revistas e periódicos acadêmicos que circulam apenas dentro da universidade e com tiragens reduzidíssimas. Ainda há cadernos culturais com vocação de trabalhar num nível com referência a literatura mais elitista. Cito o caderno Mais da Folha de São Paulo, e em algumas vezes o caderno B do Jornal do Brasil, que existiu durante muito tempo. Depois ele se comercializa e muda o tratamento do que vai selecionar. E se ele era a base do jornal, hoje é uma excrescência, é algo marginalíssimo, porque se tu abres um segundo caderno de um jornal, estão lá os produtos da indústria cultural massificados, e a literatura não é um produto cultural massificado.

P- Você escreve para adultos e crianças. É difícil escrever pra criança?

R- As vezes fazemos a comparação de que falar pra criança é muito mais difícil do que pra adulto. Eu não me sinto forçado a escrever. Não estou fazendo um estudo da linguagem para este tipo de público. Espontaneamente me expresso daquela forma, me dirigindo a um tipo de público, mesmo se antecipadamente, ao começar a escrever, eu não tenha esse planejamento positivista. Tenho um leitor ideal e me dirijo a ele. A partir daí o tratamento da linguagem aparece de maneira espontânea, porque se ele não aparecer assim ele seria forçado e artificial. Se ele é espontâneo eu não tenho dificuldade de escrever. Agora, se eu fosse escrever para as vovós... não me passa pela cabeça escrever. Então não seria espontâneo. “Vovô fugiu de casa” é vendido para crianças e pessoas mais velhas. E eu não pensei em escrever para os avós. Não estava utilizando esta linguagem. E também não pensei: vou cortar as palavras difíceis! Ou elas apareceram daquele jeito ou eu vou trabalhar no sentido forçado. Não sinto dificuldade de escrever. Talvez se fosse um trabalho encomendado, talvez sentisse.

Podemos começar um livro três anos antes inconscientemente e aquela idéia amadurecer. No momento em que a idéia já está madura e jorra, ela vai de uma maneira espontânea mesmo em termos de estilo e do tratamento que se vai dar.



P.S - Esta entrevista, jamais publicada além da monografia de conclusão do curso de Jornalismo, foi realizada dia 20 de maio de 2003, na Faculdade de Artes e Comunicação, na Semana Acadêmica da FAC.



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