8.5.07

Conversa de duas vizinhas

Hoje resolvi fazer uma matéria sem restrições jornalísticas. Sem padrões salientes, sem ouvir os dois lados. Fui apenas conversar sobre um assunto que me inquieta muito.

Moro no centro de Passo Fundo, entre a rua Morom e a Independência. Na esquina, do lado de baixo do prédio onde resido, há um armazém chamado “Armazém e fruteira do Danilo”. Ali, junto ao armazém, habita a família do seu Danilo. Ele, a mulher, dona Ieda, a filha e dois gatos, o Amim e o Guri. O casal vive há 19 anos nesse lugar. Com o tempo veio a filha e os bichinhos. Há um bom tempo observo o quanto a dona Ieda é solícita com os animais de rua. Aqui na nossa “confluência”, há mais ou menos uns 10 gatos e uns 7 cachorros. Todos alimentados pelos moradores da redondeza e, principalmente, pela dona Ieda, a qual considero, verdadeiramente, a nossa governadora.

Dona Ieda tem 54 anos e faz a diferença na vizinhança. É ela, juntamente com mais duas mulheres, quem alimenta e trata os cachorros e gatos. Se um vizinho quer dar comida ou remédio e tem medo de um deles, a Dona Ieda é o ponto seguro. Numa dessas manhãs, indo para a universidade, vi que um dos dogs, o amigo Rabisco, estava machucado na cabeça, resultado de uma pedrada. De imediato consegui o remédio. Mas quando fui passar no gigante Rabiscão, como chamo, ele se mandou. Como consegui solucionar o problema? Gritando para a Dona Ieda, que veio rindo ao meu encontro. Chamou o Rabisco e dentro de instantes o bicho estava com o remédio na cabeça. “Tenho dó desses bichinhos na rua, por isso dou comida e cuido deles”.

Numa noite dessas resolvi bater um papo com a Dona Ieda. Fui de pantufas e gravador até o Armazén.

- Dona Ieda, a senhora me concede uma entrevista?

- Eu?????????

Quem freqüentava o armazém naquele momento e tomava a cachacinha de final de tarde, olhou pra Dona Ieda e riu. “Mas há, hein, D. Ieda”!!!

Quando comecei de fato a entrevista, realizada na rua, no meio da bicharada, questionei:

- Por que a senhora ajuda tanto os bichinhos (D. Ieda é praticamente uma Madre Teresa do bichos)

- A gente gosta dos bichinhos...Eu sempre tive gatos, sempre, sempre, sempre, desde pequena... e aqui na rua, entre cachorro e gato tem uns 15.

Todos os dias, nos três turnos, D. Ieda sai do armazém para dar comida e carinho para toda a galera que vive por ali.

- A gente paga imposto, paga tudo... a prefeitura deveria fiscalizar isso... deveria conferir se estes bichos são de alguém ou não...

Perguntei se ela sabia quanto gastava por mês com o seu lado de boa samaritana. Dona Ieda riu e disse que não tinha idéia.

- Eu nem somo, porque eu ganho a comida (para dar pra eles)... todos os vizinhos me trazem. Uma vem com uma sacolinha, a outra vem com outra.... e guardamos no freezer. Nessa vizinhança todo mundo ajuda... mas tem gente que ajuda a largar gato também - diz rindo.

Com o passar dos dias, sempre sorrindo, dona Ieda dá carinho e tenta encontrar um novo lar para os bichinhos que não o tem:

- Antes tinha 10 gatos, agora já consegui doar 5....os bichinhos são largados aqui e vão se refugiando.

Além dos gatos, tem também os cachorros. Uma das preocupações da comerciante é a cadelinha Coração.

- Ela deu cria quatro vezes... a cada seis meses tem mais cachorrinhos. Não posso chegar perto (dos cachorrinhos recém-nascidos) porque tem um cachorrão atado... não dá pra chegar perto. Mandei um cara que tem amizade com o cachorro pra olhar.

Eis que, no meio da nossa conversa aparece Nenê, um cachorro muito bonito, com a cor dos olhos diferente um do outro.

- Esse aqui ó, é filho do Rabisco.

* * *

Para você, leitor, entender melhor, o Rabisco tem uma história clássica na vizinhança. Ele é filho de Saddam e uma cadela que não lembro o nome. Então, os donos dos cachorros-pai-e-mãe doaram o Rabisco, então bebê, para a casa ao lado. Esta, porém, não cuidou do Rabisco. As vezes ele passava fome e chegou até a ser atropelado algumas vezes. Então a família que doou tentou reaver o Rabisco, sem sucesso. O caso parou até em instituições de amparo aos animais. Pois a família que ganhou o Rabisco o pegou de volta. E mais uma vez não o cuidou. Então o rabisco fez um sexo com a Coração e nasceu o Nenê. O Rabisco parece mesmo aquele cachorro da Patrulha Salvadora, da novela Carrossel. E tem uma cara muito falcatrua, de cachorro feliz e que apronta. Quando a família do Rabisco mudou-se de endereço, ele ficou. Dormia em frente ao meu prédio. Eu auxiliava na alimentação e me tornei amiga do dog. Quando eu chegava de madrugada o Rabisco cansou de me acompanhar. Então a família dos pais do Rabisco o pegou de novo. E ele ficava então dentro da propriedade da família, num pátio. Uma ou duas horas por dia eles soltavam o Rabiscão para brincar com os amigos. A vizinhança inteira estava feliz com a nova vida do Rabisco. Até que um dia, há pouco tempo, a família que ganhou o Rabisco veio buscá-lo. Hoje dizem que ele vive amarrado.

* * *

Voltando ao papo feliz com a D. Ieda.... ela está falando bem do filho do Rabisco, o Nenê.

- Tem um olho azul e outro marrom. Ele é lindo.

Então ela dirige-se ao Nenê com voz de um adulto que brinca com crianças e animais... aquela voz diferente: “Oi nenê?? Olha meu olho? Um azul e um marrom??? Eu sou simpático”, imita um cachorro falante. Quando Dona Ieda olha para o lado vem Loirão, um simpático Dog clarinho que mora em frente ao armazém.

- É hora de janta agora... ó o outro levantando pra conferir (fala referindo-se ao Loirão, que viu a movimentação com um rango). O loirão é castrado... mas não tem dono. Ele fica aqui e ganha comida... acho que ele quer ser nosso - afirma “queridamente”.

Dona Ieda me conta que tem dois gatos (na verdade eu já sabia... vivo brincando com eles)...

- Eu tenho dois gatos, o Amim e o Guri. O Guri eu fui buscar e o Amim um dia eu cheguei e ele tava aqui. São castrados e não saem de casa. Não são festeiros.

Ela me olha e pede:

- Quantos anos tem a tua?

- Um aninho.

- Ôôôô.... é a idade bem afoita... (risos). O Guri vai fazer 8 e o Amim vai fazer 5. Eles vivem bastante. A minha filha diz que eu sou vó e o Danilo é vô... minha filha diz que eles vão morar na praia com a gente.

Neste momento D. Ieda é tirada abruptamente do devaneio litorâneo. Passa um carro e o Loirão sai acuando atrás do carro:

- ó, de noite ele faz isso. E isso que me estressa! Ele chama todos os outros para irem junto... e se dá um acidente, sobra pra quem? Pra eles! Eu não sei o que vai acontecer. O Nenê ajuda o Loirão. Na madrugada eles agitam.

- É, mas eu tenho que defender eles na madrugada....

- Eles te ajudam?

- Siiiim... fazem proteção pra mim.

- Eles são muuuuuito queridos. Eles querem trabalhar e prestar serviço pra gente... o Loirão é muito querido.

E grita:

“Loirão, sai da rua!”... parece que eles sabem o horário também... Ó lá a comidinha deles ali no outro lado da rua... ali tem água e comida pra todos os bichos que passam na rua – diz.

Dona Ieda me olha e recomeça a falar:

- Se eu tivesse mais espaço eu queria mais (bichos). Gosto muito de bicharedo. Eu gosto mais de gato do que cachorro, gato dá menos trabalho, porque eles são mais independentes. Mas a maioria das pessoas não gosta de gato, são supersticiosos, dizem que dá azar... mas pra mim é o contrário! E eles são muito mais limpos que os outros. Mas eles precisam brincar com alguém, ... o que eu tenho de foto deles... eles estão até na Internet esses dois! A minha filha que coloca....

Quando penso em tirar uma foto dos cachorros que participavam como “ouvintes” da entrevista, Ieda disse:

- Ô Loirão, olha pra cá com essa tua cara suja! Vamos tirar uma foto! – disse ela brincando.

De imediato o cachorro saiu correndo e começou a acuar.

- Ai que medo! Ai que medo! (eles ficam com medo da máquina)... parece que machuca! Mas é que eles são bichos com problemas, sofreram muitos acidentes, eles têm muito medo – reitera.

Enquanto estamos conversando vem a Coração, a cadelinha que deu cria há algumas semanas:

- Oooooiiii coração (diz manhosa)....hora da janta... ela não gosta muito de ração, gosta de comida... Mas ela não gosta de vir pegar a comida porque os outros roubam a comida dela. Tem dias que ela é bem enjoada.... “pega Coração!”.... (Coração pega e vai comer escondida. Os outros saem atrás pra pegar a comida da boca da Coração). “Vai ligeiro coração”... Ela pega um pedaço e vai pra casa, pega outro e vai pra casa. Daqui a pouco ela volta pegar mais. Vem e vai... e tu sem vergonha.... (diz olhando para o Nenê...) Tenho que cuidar pra dar comida pra ela. Eles se dão bem, mas na hora da comida é assim! Daqui a pouco ela volta...é uma confusão com esses bichos. A Coração deve ter mais de 8 anos, pelo menos que eu me lembro dela.

- A senhora acha que algum deles, aqui da nossa vizinhança, passa fome?

- Fome nenhum deles passa. São todos obesos, a menos alimentada é a Coração...porque ela é enjoadinha... e mesmo assim ela não é magra. A vizinha disse que ontem largaram lá no Capa (entidade que cuida dos animais de rua) um monte de gatinhos sem mãe, e uma cadelinha grávida e com o pescoço cortado. Eu se tivesse um espaço queria botar eles fechados, para não ficarem na rua....(e, mudando de assunto) Esse aí também não gosta dos flashes...o Guri (Ieda faz os gatos posarem para fotos. Mas nada adiantou)! “ora, ora, ora...”... Ele não quer muita conversa. E o Amim sumiu... não aparece na foto de noite, de tão preto que é.

Quando termino a nossa conversa relacionada a voluntarismos e amor pelos animais, dona Ieda se despede de mim, vendo a Pepê, uma gatinha minúscula mãe de quatro gatos.

- “Oi Pepê, oi lindinha, tudo bem”??? Já tem criança com esse tamanho! Olha que coisa mais linda! Olha as patinhas... ela é muito pequeninha... Não tem mais do que um ano e já é mãe... ela vem sempre pedir comida. Hoje de manhã eu queimei o assado e ela já tava aqui miando.

Dona Ieda alimenta Pepê, às 21 horas, ela, enfim, entra para dentro de casa.

Um comentário:

Anônimo disse...

É isso aí! Tem que ajudar!