30.3.07

“Tudo é questão de despertar a sua alma”

Quando eu era adolescente, ouvia muitíssimos comentários de um certo livro cujo nome se intitulava “Cem anos de solidão”, escrito por um colombiano, jornalista e escritor, chamado Gabriel García Márquez.

Enquanto esperava a reserva do livro na biblioteca, todas as noites eu imaginava a história deste livro. “Cem anos de solidão”! Deitada na cama, na época um beliche, olhando para o teto, eu balbuciava o nome do livro e divagava horas sobre o título e a história que teria dentro dele. Cem anos de solidão para um homem sozinho e sofredor? Uma família envolvida em conflitos do coração? Cem anos de solidão para alguém bom ou mal?

Quando finalmente peguei o livro na biblioteca da universidade, vim ligeiro para casa. Lembro bem da capa do livro. Havia uma ilustração grande e colorida que me fez vir encarando-a até em casa, sem conseguir abrir a primeira página. Ao entrar dentro de casa, corri para a cama e, somente então, abri a primeira página e ali estava, na abertura do texto:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Fiz uma pausa e naquela fração de segundos pensei acerca do poder limitador da minha adolescência. Esse livro seria, sem dúvida, muito maior do que simplesmente qualquer idéia minha de cem anos de solidão para um homem sozinho e sofredor ou qualquer outra blasfêmia adolescente. “Conhecer o gelo”! Que fantástico! Tomei fôlego de novo e, naquela altura, eu já sabia que aquele livro me transformaria em outra pessoa. As próximas linhas do texto me puxaram para uma história fantástica que ninguém, jamais, havia me contado:

“Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. ‘As coisas têm vida própria’ apregoava o cigano com áspero sotaque, ‘tudo é questão de despertar a sua alma’”.

“Cem anos de solidão” fez-me viajar, conhecer Macondo e toda a geração dos Buendía. E, desde então, Gabriel García Márquez tornou-se um dos meus principais escritores; porque ele me fez entender que o bom escritor é aquele que não só seduz o leitor, mas que, além de atrair, também encanta, assusta e distorce a realidade do nosso mundinho pessoal.

E isso o “Gabo” sabe fazer. Em “Cem anos de solidão”, por exemplo, o autor escreveu um romance épico, alicerçado numa técnica de narrativa criada no gênero romanesco da Idade Média e, mais tarde, ampliada no início dos anos 60. Essa técnica, que se chama “realismo fantástico”, prima por escrever uma história entre o real e o incomum, transformando, no texto, a ficção e a ilusão em realidade ficcional. O “realismo fantástico”, utilizado pelo escritor colombiano e por outros escritores como Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar e, inclusive, Franz Kafka (García Márquez começou a escrever depois que leu A Metamorfose), enfatiza a verossimilhança, que se consolida em entreter o leitor na “fantasia” e, ao mesmo tempo, deixar que ele (o leitor) fique naquela dúvida cruel do fato ser verdade ou mentira, possível ou impossível, realidade ou irrealidade, promovendo uma interação entre autor e leitor. E estas oscilações transformam o texto em ambigüidade, o que é mais um dos elementos do realismo fantástico.

Gabriel García Márquez tem uma vasta obra. Destacam-se, entre muitas outras, “Crônica de uma morte anunciada”, “O amor nos tempos do cólera”, “Ninguém escreve ao coronel” e “Viver para contar”. Recentemente, foi lançada pela Record uma coleção de livros com as crônicas, reportagens e textos de Márquez, todos escritos durante o tempo em que trabalhou nos periódicos da América.

Agora, nos oitenta anos do autor, completados há alguns dias, foi anunciado pelo governo da Colômbia que a casa onde “Gabo” nasceu será restaurada e transformada em museu. A “Casa Museu de Aracataca” vai recriar a infância do escritor vivida neste local, onde sua avó lhe contava uma infinidade de histórias. O evento acontece em razão dos 80 anos de vida e, também, pelos 40 anos do lançamento da primeira edição de seu livro mais importante, “Cem anos de Solidão”.

As festividades de aniversário do autor em todo o mundo e a criação do museu são resultado da solidificação literária e, também, jornalística dos livros do de “Gabo”. O autor, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, é importantíssimo porque resgata técnicas narrativas, traz a criatividade e as lembranças de quem foi e é leitor e contador de histórias desde a infância e, principalmente, porque García Márquez concebeu toda a sua obra norteada nas temáticas sociais de seu povo. Falando da realidade de onde viveu, ou escrevendo sobre o que recorda, Márquez soube contrabalançar elementos como tradição e, ao mesmo tempo, modernidade. Foi ele quem popularizou as histórias dos países em desenvolvimento da América Latina para o mundo.

“Jornalista literário” é a definição para o nome de Gabriel García Márquez. E toda a sua obra pode ser assimilada por uma única frase escrita no primeiro volume de seu livro de memórias, “Viver para Contar”: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.


* A ilustração acima foi feita por Vasco.

* * Artigo originalmente publicado no jornal Diário da Manhã de Passo Fundo.

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