22.8.07

O de sempre

Por Luis Henrique Boaventura

Atravessa a rua debaixo de uma chuva torrencial. Como um peixe, rasgando a correnteza brava fisgado pelo anzol brilhante do velho letreiro de néon. Entra num bar qualquer, num bar que nunca havia entrado na vida. “O de sempre”, diz ele, enquanto se livrava da água como um cachorro molhado. O barman nunca o tinha visto, mas percebeu a total falta de senso do homem. Serviu um scotch duplo. Não diria nada. Em primeiro lugar, porque não queria um conflito em vão. Depois, porque não tinha a menor inclinação a qualquer tipo de caridade. Já que se nem percebera que aquele não era o lugar que freqüentava, certamente não perceberia ou sequer sentiria o gosto da bebida. Talvez, como qualquer outro, ao menos uma vez na vida, precisasse apenas de algo forte para queimar sua garganta. Para dar-lhe a certeza de que, apesar de todas as fortes evidências gritando o contrário, permanecia vivo. Nunca valeu a pena ao barman se interpor entre um homem e seu copo. Mas não... aquele levou a boca à bebida, e não o contrário. Parecia querer mergulhar nela, prevendo exatamente o sabor redentor que o esperava. No entanto, sentiu o aroma clássico, a suavidade decepcionante de um uísque impotente frente àquela língua calejada de destilados. Sentiu que não era o que bebia sempre, nem o que pagaria para beber. Se tivesse tal intenção, de qualquer modo... Olhou para o chão montado de parquê escuro, coberto pelo grosso tapete de poeira e bitucas de cigarro. Deu uma boa olhada naqueles rostos inéditos que se camuflavam entre as sombras plantadas pelas altas horas de um domingo à noite, no terreno árido das mesinhas de fundo. Respirou aquele ar diferente, carregado de fumaça nacional e nicotina nativa, quase edificante, quase estranha, tão densa que poderia ser capaz de produzir paladar ao invés de aroma. Olhou para um rádio antigo que conversava em letargia com o acaso, escondido no balcão alto da esquerda, junto aos vidros de pepino, preenchendo cada canto, cada fresta de parede e de telhado com um silêncio de sentidos e um carnaval de estática. Havia pegado a primeira e não a segunda à esquerda depois da igreja, provavelmente. Enfim percebeu, sem que precisasse de qualquer palavra do barman. Sabia beber, mas não era capaz de andar, pensar ou sentir sozinho. Quase puxou o revólver ali mesmo...

“Por que o senhor não se senta? Senta aí, pega um banco”. Bastaram alguns segundos para que o barman se arrependesse. Mal sabia que salvara a vida do homem. Ou que a condenara por completo... Ele respondeu com um olhar para o teto avermelhado, com as mãos que se desprendiam do gatilho frígido do revólver e se revelavam sobre os bolsos da jaqueta de couro de uma década de idade. Alcançou um daqueles banquinhos duros e sentou. Arremessando seus braços cansados sobre balcão, e erguendo com dificuldade os olhos em direção ao barman, pediu absinto. O tal do barman aparentava uns sessenta, sessenta e cinco anos. Não devia ter mais de cinqüenta, mas estavam estampadas nas linhas fortes do seu rosto centenas e centenas de noites de domingo como aquela. Cada uma delas o envelhecia uma semana. O homem, por sua vez, aparentava já estar morto. Teria uns trinta e cinco, soando bem generoso. Já a garrafa de absinto parecia anterior aos dois. Envolta pelo manto de uma poeira grossa que cobria o verde intenso da bebida. A criptonita de qualquer homem.

Ela é virada de vagar, como se vira uma mulher com cuidado para não acordá-la. As primeiras gotas fogem pelo lado torno da garrafa. Podia-se vê-la explodindo ao atingir o fundo do copo, iluminava quase o bar inteiro, acompanhada pelos trovões distantes da tempestade que se afastava. O barman nem havia terminado de enchê-lo quando o homem pegou-o de repente do balcão. Olhou a bebida fixamente. Seduzindo-a, conquistando-a, bebendo-a primeiro com olhos, para só depois tragá-la sem culpa alguma. Nem chegou a tocar o copo com os lábios, jogou o verde fósforo corrosivo direto na garganta, cortada, aberta pela ardência furiosa que o libertava. Era como se um desejo masoquista retido e uma pequena parte de sadismo tivessem sido derretidos, destilados e dissolvidos no fundo daquele copo. Como ele mesmo. Sobrado no fundo do copo, olhando para a cara assustada do barman de baixo para cima, como se fosse disparar algo ou ele próprio contra alguém. E talvez fosse mesmo, caso um tal de Roberto não tivesse resolvido entrar entre os dois no meio da noite...

“Meia-noite em ponto! Eu sou Roberto Cavalcante e este é o Madrugada Ao Vivo. Chove muito lá fora...”. “Desculpe, já passa da meia-noite, e eu preciso fechar o bar”, diz o barman, fingindo constrangimento, aproveitando a deixa do rádio que em vinte anos esquecido entre os vidros de pepino finalmente servira para alguma coisa. “Mas pode beber essa aí, eu vou fechando as janelas e dando boa noite ao pessoal”. Os homens ao fundo do bar, que compunham “o pessoal”, amigos do barman pela mera ocasião de precisarem de um lugar onde pudessem deixar suas vidas do lado de fora, não passavam de cinco ou seis. Não dava pra saber ao certo, já que uns pareciam homens, outros, apenas sombras de homens. Do que foram, e do que poderiam ter sido. Ele sorve a bebida lentamente, absorvendo-a como uma esponja, enquanto os observa sentados ao fundo com um olhar que esconde certa familiaridade. Parecia, pela ironia do engano, ter enfim encontrado um lugar que poderia ter sido feito dele mesmo. Cada tijolo, cada peça de parquê, exalava seu cheiro.

Os outros iam afastando cadeiras e lançando moedas sujas às velhas mesinhas condenadas pela umidade. O barman já contornava o balcão para o lado de dentro cobrando o homem... “São quatro pelo uísque e cinco pelo absinto”. Mas ele fixa seus olhos no balcão. Parecia tê-los perdido por ali. Demora alguns segundos, mas responde. “Preciso contar uma coisa”. Os pés do barman o carregam dois passos atrás, enquanto as mãos ainda se apoiavam com força no balcão. “Eu vou matar um cara”. A resposta do outro foi imediata. Talvez nem fosse uma resposta, talvez estivesse apenas enganando a si mesmo para encobrir com palavras repetidas o que acabara de ouvir. “Olha, eu não quero saber. Por favor, são quatro pelo uísque e cinco pelo absinto. E vamos logo que eu tenho que fechar o bar...”. Mas ele, de repente, não ouvia mais. “Eu nem sabia que era capaz de sentir tanto ódio”. Deixou escapar uma risada no final da frase. Algo no limite entre o sarcasmo do desespero e um possível sadismo, uma satisfação antecipada pelo que estava prestes a fazer. O barman já tateava entre as garrafas de baixo do balcão por um velho 38 nunca usado...

“Ele quer que eu faça uma coisa, mas eu não vou... Não era pra eu estar aqui, eu nem sei o que estou fazendo aqui. Foi ele, ele quem me pôs aqui”. O Barman já tinha ouvido histórias, mas depois dos primeiros anos, não prestava mais atenção. Poderia prever o final de cada uma delas pela primeira frase, e todas, sem exceção, terminavam no fundo de um de seus copos. Mas teve a curiosidade fisgada desta vez, depois de tanto tempo. Esqueceu do revólver debaixo do balcão, e deixou que ele falasse... “Aquele sádico maldito... Quem ele pensa que é? Acha que pode controlar tudo, acha que sabe tudo sobre mim, tudo sobre você... Ele não sabe NADA!”, gritara ele pela primeira vez. Mas o barman não percebeu, estava mais interessado no sentido daquelas palavras pronunciadas sob efeito anestésico que no volume que de repente rivalizava com Roberto Cavalcante.

“Era pra eu me matar, aqui, na sua frente... Mas seria assassinato, não? Ele estaria me matando”. Visivelmente bêbado, já não distinguia muito bem o que falava. “Eu não estou bêbado!”. Sim, está. “Desgraçado!”. Cala a boca. “Eu vou te matar!”. Ele salta do banco e tenta puxar o revólver, que inexplicavelmente, fica preso no bolso da jaqueta ao mesmo tempo em que o tambor se abre, derrubando todas as balas. O Barman o observa atônito, e percebe que o melhor é acabar com o sofrimento de um pobre homem atormentado e sem expectativas... “Não!” – diz o coitado, numa tentativa vã de intervenção – “Ele não pode te controlar, não o ouça!”. O barman fica inerte por alguns segundos. Certamente imaginando de que modo poderia mata-lo de forma rápida e sem sofrimento. “Não, eu nunca matei ninguém”, diz o barman, que a propósito, fora assassino de aluguel na sua juventude. “É mentira! E eu tenho quarenta e cinco, posso parecer mais velho por causa do bigode”. Você não tem bigode. “Claro que tenho”. Eu não disse que tinha.

“Sim, tem! Eu estou na frente dele e digo que ele tem! Você nem sabe o nome dele, nem o meu... Fica com essa frescura de ‘homem’, ‘barman’”, dizia Alfredo, entre as mesas, enquanto Arnaldo continuava estático atrás daquele balcão. “Eu nunca tinha ouvido antes... Nunca tinha percebido essa voz, essa maldita voz na minha cabeça...” – Alfredo pausava sua fala com socos verticais desferidos furiosamente contra as velhas mesinhas. Arnaldo mantinha-se da mesma forma, quase como se estivesse economizando oxigênio, como se quisesse fazer seu coração parar de bater. – “Não, não está só na sua cabeça, eu o ouço também, disse que estou tentando me matar” – Não disse isso – “Se meu coração parar de bater, eu morro, pra mim é a mesma coisa” – Não, eu falava de modo... – “Mas se esse alguém está agora descrevendo tudo isso, quer dizer que fui controlado minha vida inteira?”, “É o que me perguntava enquanto bebia aquele absinto. Droga, eu odeio absinto...”. Não me interrompam! Vocês acham que existiam antes de eu me sentar aqui e começar a escrever? Eu criei vocês, dei-lhes uma memória e características para que pudessem figurar nesta página. Vocês não têm sentido algum fora daqui. “É mentira, é tudo mentira” – Arnaldo bradava, atropelando Roberto
Cavalcante, agora tímido e inofensivo em sua caixinha de madeira – “Eu tenho duas filhas”. Não tem. “Tenho, lembro delas hoje de manhã”. Lembra, mas não tem. “Eu sei que tenho, você não vai me convencer do contrário”. De qualquer modo, se tinha, não tem mais, porque vou criá-las e matá-las no próximo parágrafo. “Não!”.

Um grito. Um tiro. Alfredo esboça um sorriso cínico, posso vê-lo se aproximando do balcão. Sim... agora vejo a arma claramente. Arnaldo permanecia com as mãos fincadas sobre o balcão, como estacas. Mas espere... Duas gotas de um vermelho vibrante contrastavam mergulhadas no copo de absinto. Arnaldo cai, lentamente. Ou tudo parece mais lento...? Alfredo tirava o revólver do bolso furado da velha jaqueta, vangloriando-se em silêncio por ter aproveitado uma tola... distração... para recolocar ao menos uma das balas no tambor.

As teclas ficaram vermelhas de repente... Meus dedos estão rígidos... As letras, elas dançam, dançam na minha frente... “Eu sabia. Você não passa de mais um personagem, criado e controlado como eu. Estava na cabeça do Arnaldo, estava na minha...” – Não é verdade... Eu imaginei você. – “Por que não desviou, por que não controlou isso? Sabe porquê? Não passa de uma voz na minha cabeça! E que não cala a boca, que não cala boca!!!”

Duas... Havia duas balas no tambor... Irônico, no entanto, que ao cair ele tenha derrubado sobre si a garrafa de absinto. Acho que fui picado por alguma coisa... Mas eu consegui, afinal... Estava planejado, estava escrito, ele não tinha escolha. Desde que pisou neste bar e foi salvo pela boca grande do barman... Estranho... Ouço teclas, muitas teclas, vindas de algum lugar... Sim, está claro agora, é dos pepinos, no balcão alto da esquerda.

Enxergo com dificuldade. O teclado parece um imã forte. Um travesseiro de penas me convidando para um sono tranqüilo. Minha cabeça pesa uma tonelada, gravitando em torno destas letras pequenas, nas palmas das minhas mãos. Ao menos eu pensava que estavam... Mas preciso resistir, preciso restabelecer o controle sobre elas e digitar meu nome no final desta crônica...


Luis Hrewq... Luis Henri... Luis Hhnmnfhnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn...


Roberto Cavalcante

Um comentário:

Anônimo disse...

muuito bom!!!